Você já
levou uma criança a uma exposição? Tomara que sim, faz bem para quem leva e é
melhor ainda para quem é levado. Mas se você, mesmo que muito bem intencionado
e armado da mais elástica paciência e atenção, foi logo avisando, na porta do
Museu ou da Galeria, de que ver é só com os olhos, propondo, então,
que seus convidados colocassem as mãozinhas para traz, sinto
informar que, suas intenções foram ótimas, mas você precisa rever suas ideias.
Talvez
pudéssemos começar propondo uma diferenciação entre o VER e o OLHAR.
Entre os dois, não há apenas uma diferença de intensidade, há uma ruptura,
um salto. São posturas diferentes que inauguram “campos de significação
diferentes”[3]. O VER pode ser
afirmado como uma atitude involuntária, marcada pela imposição das coisas sobre
o sujeito. Este, ingênua e passivamente, atua como uma espécie de “detector de
metais”, que denuncia a presença de objetos, mas que se manifesta sonoramente
da mesma forma, tanto pela presença de um chaveiro quanto por uma arma de fogo
de um possível sequestrador de aviões. Ver não exige vontade,
basta se colocar à disposição, não exige espessura ou profundidade, basta o
registro espontâneo da superfície visível.
O olhar é
outra coisa, pressupõe outra postura, desencadeia outra relação, exige outro
sujeito. Olhar é ir além da visão, rumo à realização de algo
intencionado. O olhar é próprio daqueles que investigam, que se
perguntam. É, pois, algo deliberado, que tenciona a relação do sujeito com o
mundo. No olhar, o sujeito pensa; no ver, se acomoda.
Não há
outra opção possível, para os que se querem educadores, senão o olhar,
ou a visão feita interrogação, mesmo quando se admira a figura
do flaneur, como decorrência romântica do mundo/cidade
moderna.
Dito
desta forma, a experiência do olhar pode parecer uma clausura
da razão, que dilacera de forma abrupta a espontaneidade e a criatividade do
homem para com o mundo. Nada disso. Ser espontâneo, às vezes confundido com uma
incapacidade de perguntar-se sobre o mundo, é na verdade uma qualidade de
responder ao que é conhecido e ao que é desconhecido, através de registros
inconscientes da cultura. Por outro lado, ser criativo, não é estabelecer uma
relação de fricção passiva com as coisas do mundo, mas a deliberada necessidade
de reinventá-las.
O Olhar é,
portanto, uma intenção de descoberta. O OLHAR RESULTA E É RESULTADO DE
NOSSA LEITURA SOBRE O MUNDO. Mas de que leitura falamos? Daquela
reduzida ao texto escrito? Certamente não. Por leitura devemos entender
todo e qualquer desvendamento de estruturas simbólicas, sejam quais forem as
linguagens, os suportes, os meios utilizados e as mensagens veiculadas. Ler é
estabelecer sentido, buscar para além e aquém do significante, o significado
latente, emergente, possível.
E é por
isso que o poeta Moacyr Félix tem razão, ao chamar o homem de pontifex:
fazedor de pontos, e ele próprio ponto. Fazedor de pontes, e ele próprio ponte.[4]
O olhar nada
mais é que o resultado de uma empreitada de desvendamento de quem lê o mundo
através da cultura, aqui pensada no sentido antropológico, como uma lente
através da qual o homem atribui sentido às coisas e a si próprio, como sugere
Roque de Barros Laraia[5]. E aqui nos encontramos frente a frente
com alguns desafios.
Se até
aqui falamos de possibilidades, é preciso reconhecer limites que precisam,
intencionalmente, ser superados. Estabelecemos leituras, organizamos nosso olhar,
a partir de códigos que nos estruturam como sujeitos da cultura. Construímos
nossa relação com a realidade, através de valores, regras e normas, que
apreendidas no coletivo, definem nossa identidade, nos dizem quem somos, a que
grupo pertencemos. Sofremos assim, de um centramento perigoso, em nossas
próprias verdades. Fazemos da diferença, a projeção redutora de nossas
igualdades. Estranhamos e nos amedrontamos frente ao que não tem registro em
nossa “província de significados”[6]. E é por isso que costumamos nos recusar
ao outro. É por isso que tornamos inexistente ou invisível tudo aquilo que
difere.
Por isso,
o olhar numa perspectiva antropológica, só se realiza em sua
plenitude arqueológica e visionária, se resultado da relativização. Se
resultado da compreensão e desconstrução das categorias subjetivas e fundantes
de nossa visão, de nosso olhar. Só dessa forma, o mundo
que o olhar inaugura e reinaugura deixa de ser o recalcitrante
reflexo de minhas, e meias, verdades, e passa a ser a realização do
entendimento respeitoso do que há de mais rico no ser humano: sua capacidade de
ser diferente.
Olhar o mundo, através da
Antropologia, é um duplo exercício: primeiro porque exige o reconhecimento das
universalidades e singularidades do ser humano, segundo, porque, não há
possibilidade maior de nos revermos, que através do outro. Mas relativizar,
desenvolver um olhar relativizador não é um ato religioso ou
ideológico, apesar de exigir fé e convicção. É antes de tudo uma postura,
ética/conceitual, que se recusa descontextualizar as ações e os gestos do homem
de seus contextos de origem; que recusa uma essência universal do homem, mesmo
que reconhecendo invariáveis de seu comportamento, por acreditar que tudo é
mais uma questão de posição e de relações.
Assim é
o olhar do antropólogo. A superação da contemplação
anestesiada do mundo, mas também a superação do centramento excludente em suas
próprias verdades.
Por isso, exposições são para ser investigadas, e
não apenas vistas. Por isso o mundo e suas realidades devem ser experimentadas
através de nossa sensorialidade, através de nossa subjetividade, através de
nossa razão. Por isso crianças olham com o corpo inteiro! Por isso o olhar antropológico
se movimenta, procurando familiarizar-se com o exótico e estranhar o que lhe é
familiar. E neste vai e vem, descobrir e buscar compreender a plasticidade
humana, sua complexidade, seus mistérios.
José Márcio Barros [2]
[1] Adaptação livre do trabalho
desenvolvido no Seminário Educação do Olhar, promovido pela Secretaria de
Estado da Educação de MG, em Junho de 1996. Publicado no Caderno Pensar, Jornal
Estado de Minas, 1/11/97.
[2] Antropólogo, Mestre em
Antropologia pela UNICAMP, Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Professor
da PUC - Minas e da Escola Guignard – UEMG.
[3] Cardoso, Sérgio, “O olhar
viajante (do etnólogo)”, in O OLHAR, Adauto Novaes (org.), SP, Cia. Das Letras,
1989.
[4] “Raciocinar é uma coisa,
pensar é outra”, Revista Encontros com a Civilização Brasileira, 3, 1978.
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