"A arte é a contemplação: é o prazer do espírito que penetra a natureza e descobre que ela também tem uma alma. É a missão mais sublime do homem, pois é o exercício do pensamento que busca compreender o universo, e fazer com que os outros o compreendam." (Auguste Rodin)

sexta-feira, 29 de março de 2019

3ª SÉRIE - TEXTO 2: 2 OU 3 QUESTÕES SOBRE O OLHAR - 1ª UNIDADE - 2019


Você já levou uma criança a uma exposição? Tomara que sim, faz bem para quem leva e é melhor ainda para quem é levado. Mas se você, mesmo que muito bem intencionado e armado da mais elástica paciência e atenção, foi logo avisando, na porta do Museu ou da Galeria, de que ver é só com os olhos, propondo, então, que seus convidados colocassem as mãozinhas para traz, sinto informar que, suas intenções foram ótimas, mas você precisa rever suas ideias.
Talvez pudéssemos começar propondo uma diferenciação entre o VER e o OLHAR. Entre os dois, não há apenas uma diferença de intensidade, há uma ruptura, um salto. São posturas diferentes que inauguram “campos de significação diferentes”[3].  O VER pode ser afirmado como uma atitude involuntária, marcada pela imposição das coisas sobre o sujeito. Este, ingênua e passivamente, atua como uma espécie de “detector de metais”, que denuncia a presença de objetos, mas que se manifesta sonoramente da mesma forma, tanto pela presença de um chaveiro quanto por uma arma de fogo de um possível sequestrador de aviões. Ver não exige vontade, basta se colocar à disposição, não exige espessura ou profundidade, basta o registro espontâneo da superfície visível.
olhar é outra coisa, pressupõe outra postura, desencadeia outra relação, exige outro sujeito. Olhar é ir além da visão, rumo à realização de algo intencionado. O olhar é próprio daqueles que investigam, que se perguntam. É, pois, algo deliberado, que tenciona a relação do sujeito com o mundo. No olhar, o sujeito pensa; no ver, se acomoda.
Não há outra opção possível, para os que se querem educadores, senão o olhar, ou a visão feita interrogação, mesmo quando se admira a figura do flaneur, como decorrência romântica do mundo/cidade moderna. 
Dito desta forma, a experiência do olhar pode parecer uma clausura da razão, que dilacera de forma abrupta a espontaneidade e a criatividade do homem para com o mundo. Nada disso. Ser espontâneo, às vezes confundido com uma incapacidade de perguntar-se sobre o mundo, é na verdade uma qualidade de responder ao que é conhecido e ao que é desconhecido, através de registros inconscientes da cultura. Por outro lado, ser criativo, não é estabelecer uma relação de fricção passiva com as coisas do mundo, mas a deliberada necessidade de reinventá-las.
Olhar é, portanto, uma intenção de descoberta. O OLHAR RESULTA E É RESULTADO DE NOSSA LEITURA SOBRE O MUNDO. Mas de que leitura falamos? Daquela reduzida ao texto escrito?  Certamente não. Por leitura devemos entender todo e qualquer desvendamento de estruturas simbólicas, sejam quais forem as linguagens, os suportes, os meios utilizados e as mensagens veiculadas. Ler é estabelecer sentido, buscar para além e aquém do significante, o significado latente, emergente, possível.
E é por isso que o poeta Moacyr Félix tem razão, ao chamar o homem de pontifex: fazedor de pontos, e ele próprio ponto. Fazedor de pontes, e ele próprio ponte.[4]
olhar nada mais é que o resultado de uma empreitada de desvendamento de quem lê o mundo através da cultura, aqui pensada no sentido antropológico, como uma lente através da qual o homem atribui sentido às coisas e a si próprio, como sugere Roque de Barros Laraia[5]. E aqui nos encontramos frente a frente com alguns desafios.
Se até aqui falamos de possibilidades, é preciso reconhecer limites que precisam, intencionalmente, ser superados. Estabelecemos leituras, organizamos nosso olhar, a partir de códigos que nos estruturam como sujeitos da cultura. Construímos nossa relação com a realidade, através de valores, regras e normas, que apreendidas no coletivo, definem nossa identidade, nos dizem quem somos, a que grupo pertencemos. Sofremos assim, de um centramento perigoso, em nossas próprias verdades. Fazemos da diferença, a projeção redutora de nossas igualdades. Estranhamos e nos amedrontamos frente ao que não tem registro em nossa “província de significados”[6]. E é por isso que costumamos nos recusar ao outro. É por isso que tornamos inexistente ou invisível tudo aquilo que difere.
Por isso, o olhar numa perspectiva antropológica, só se realiza em sua plenitude arqueológica e visionária, se resultado da relativização. Se resultado da compreensão e desconstrução das categorias subjetivas e fundantes de nossa visão, de nosso olhar. Só dessa forma, o mundo que o olhar inaugura e reinaugura deixa de ser o recalcitrante reflexo de minhas, e meias, verdades, e passa a ser a realização do entendimento respeitoso do que há de mais rico no ser humano: sua capacidade de ser diferente.
Olhar o mundo, através da Antropologia, é um duplo exercício: primeiro porque exige o reconhecimento das universalidades e singularidades do ser humano, segundo, porque, não há possibilidade maior de nos revermos, que através do outro. Mas relativizar, desenvolver um olhar relativizador não é um ato religioso ou ideológico, apesar de exigir fé e convicção. É antes de tudo uma postura, ética/conceitual, que se recusa descontextualizar as ações e os gestos do homem de seus contextos de origem; que recusa uma essência universal do homem, mesmo que reconhecendo invariáveis de seu comportamento, por acreditar que tudo é mais uma questão de posição e de relações.
Assim é o olhar do antropólogo. A superação da contemplação anestesiada do mundo, mas também a superação do centramento excludente em suas próprias verdades.
Por isso, exposições são para ser investigadas, e não apenas vistas. Por isso o mundo e suas realidades devem ser experimentadas através de nossa sensorialidade, através de nossa subjetividade, através de nossa razão. Por isso crianças olham com o corpo inteiro! Por isso o olhar antropológico se movimenta, procurando familiarizar-se com o exótico e estranhar o que lhe é familiar. E neste vai e vem, descobrir e buscar compreender a plasticidade humana, sua complexidade, seus mistérios.

José Márcio Barros [2]



[1] Adaptação livre do trabalho desenvolvido no Seminário Educação do Olhar, promovido pela Secretaria de Estado da Educação de MG, em Junho de 1996. Publicado no Caderno Pensar, Jornal Estado de Minas, 1/11/97.
[2] Antropólogo, Mestre em Antropologia pela UNICAMP, Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Professor da PUC - Minas e da Escola Guignard – UEMG.
[3] Cardoso, Sérgio, “O olhar viajante (do etnólogo)”, in O OLHAR, Adauto Novaes (org.), SP, Cia. Das Letras, 1989.
[4] “Raciocinar é uma coisa, pensar é outra”, Revista Encontros com a Civilização Brasileira, 3, 1978.
[5] “Cultura um conceito Antropológico”, Rio, Zahar, 1986.
[6] PEIRANO, Marisa, A FAVOR DA ETNOGRAFIA, Rio, Relume, 1995.

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